Garganta, J. (2002) - Universidade do Porto, Faculdade de Ciências do Desporto e de Educação Física
"O praticante deve saber o que fazer, para poder resolver o problema subsequente, o como fazer, seleccionando e utilizando a resposta motora mais adequada. Isto exige que os praticantes possuam uma adequada capacidade de decisão, que decorre duma ajustada leitura do jogo, para poderem materializar a ação através de recursos motores específicos, genericamente designados por técnica.
As técnicas constituem ações motoras especializadas que permitem resolver as tarefas do jogo. (Garganta, 1997)
Tem-se verificado uma obsessão pelos aspetos do ensino/aprendizagem centrados na técnica individual (Bonnet, 1983), partindo-se do princípio que a soma de todos os desempenhos individuais provoca um apuro qualitativo da equipa e também que o gesto técnico aprendido duma forma analítica possibilita uma aplicação eficaz nas situações de jogo.
Os processos de ensino e treino têm constituído em fazer adquirir aos praticantes sucessões de gestos técnicos, empregando-se muito tempo no ensino da técnica e muito pouco ou nenhum no ensino do jogo propriamente dito (Gréhaigne & Guillon, 1992).
Bunker & Thorpe (1982) constataram que quando a técnica é abordada através de situações que ocorrem à margem dos requisitos táticos, ela adquire um transfer diminuto para o jogo.
A verdadeira dimensão da técnica repousa na sua utilidade para servir a inteligência e a capacidade de decisão tática dos jogadores e das equipas. Um bom executante é, antes de mais, aquele que é capaz de seleccionar as técnicas mais adequadas para responder às sucessivas configurações do jogo. Por isso, o ensino e o treino da técnica no Futebol, não devem restringir-se aos aspetos biomecânicos, mas atender sobretudo às imposições da sua adaptação inteligente às situações de jogo. Nesta perspetiva, é mais importante saber gerir regras de funcionamento, ou princípios de ação, do que utilizar técnicas estereotipadas ou esquemas táticos rígidos e pré-determinados (Garganta, 2001).
Importa que os praticantes assimilem um conjunto de princípios que vão do modo como cada um se relaciona com o objeto do jogo (bola), até à forma de comunicar com os colegas e contra-comunicar com os adversários, passando pela noção de ocupação racional do espaço de jogo (Garganta & Pinto, 1994)
O desenvolvimento da capacidade para jogar implica um desenvolvimento de "saberes", saber o que fazer (conhecimento declarativo) e saber executar (conhecimento processual).
Atualmente, os especialistas defendem a utilização de uma pedagogia de situações-problema, a qual representa um prolongamento lógico dos modelos de ação motora inspirados nas ciências cognitivas e nos modelos sistémicos. Assim, pode dizer-se que se assiste a uma transição dos modelos analíticos para modelos sistémicos.
Referências fundamentais para o ensino do Futebol
Condicionantes Estruturais e Funcionais
Dimensão do terreno de jogo e número de jogadores
Quanto maior o espaço de jogo, mais elevada terá de ser a capacidade para o cobrir mental e fisicamente.
O desenvolvimento da progressiva extensão do campo perceptivo (da visão centrada na bola...à visão centrada no jogo) é um dos aspetos mais importantes a que se deve atender na formação, na medida em que o jogo de Futebol reclama uma atitude tática permanente.
Esta é uma das muitas razões pelas quais se torna aconselhável que, nas fases iniciais quando o praticante tem dificuldade em controlar a bola, o jogo seja aprendido num espaço mais reduzido e com um menor número de jogadores (7 ou 5, p.ex). Neste contexto teoricamente menos complexo, o principiante tem mais e melhor acesso à progressiva compreensão das linhas e força do jogo e bem assim a um melhor entendimento e cumprimento dos princípios e regras de gestão do jogo
Duração do jogo
Séniores: O tempo de jogo estabelecido para uma partida de Futebol de onze são 90 minutos. O tempo de jogo efetivo são apenas 50 minutos. Durante este tempo, cada equipa poderá estar na posse de bola, em média, 25 minutos e cada jogador entre 30 segundos (defesas centrais) e um máximo de 3 minutos (para os condutores de jogo). Durante todo o restante tempo os jogadores seleccionam informações, analisam-nas e tomam decisões (Bauer & Umberle, 1988; Gréhaigne, 1992)
Controlo da bola
A aprendizagem do jogo de Futebol implica a construção da maestria da relação com a bola, em função das exigências táticas do jogo.
É importante que quando um jogador erra, o treinador consiga identificar se o erro ficou a dever-se a uma deficiente leitura da situação (mecanismo perceptivo e de decisão mental), ou se deriva da sua ineficiência técnica ou física para responder a tal situação.
Frequência da concretização
A relação entre as ações de ataque e êxitos quantificáveis é apenas de 50 para 1.
Estas constatações não devem conduzir a uma diminuição da importância atribuída à finalização no ensino/treino do Futebol. Bem pelo contrário, dever-se-á propiciar a criação de um grande e variado número de ocasiões de finalização, quando não o praticante perde de vista o objetivo central do jogo (o golo) e centra a sua atuação ao nível do jogo de transição, provocando um desequilíbrio entre o jogo indireto e o jogo direto.
Colocação dos alvos
Terreno de jogo
Para além das marcações regulamentares, assinaladas no terreno de jogo, existem outras referências importantes para que os jogadores nas diferentes fases (ataque e defesa), respondam aos imperativos do jogo, respeitando os princípios ofensivos e defensivos.
Estas zonas ou áreas, não assinaladas fisicamente no terreno, podem ser perspetivadas:
a) longitudinalmente, ou à largura do terreno de jogo, sendo normalmente designadas por corredores (1 corredor central, situado no eixo da baliza atacada - baliza defendida; 2 corredores periféricos ou laterais, contíguos ao corredor central, um do lado esquerdo outro do lado direito);
b) transversalmente, ou ao comprimento do terreno de jogo, sendo habitualmente designadas por setores (defensivo, médio e ofensivo).
Princípios de jogo
Os princípios de jogo constituem um conjunto de normas que orientam o jogador na procura de soluções mais eficazes, nas diferentes situações de jogo, pelo que são também referenciais muito importantes para o ensino e treino do futebol.
Na fase de ataque, quando a equipa tem a posse da bola e procura criar situações de finalização e marcar golo; e a fase de defesa, quando a equipa não tem a posse da bola e tenta impedir a criação de situações de finalização e a marcação do golo, procurando apoderar-se dela.
O êxito do ataque e da defesa exige uma coordenação precisa das ações dos jogadores, segundo princípios gerais e princípios específicos
Condicionantes pedagógicas
As estratégias mais adequadas para ensinar o jogo passam por interessar o praticante, recorrendo a formas jogadas motivantes, implicando-o em situações problema que contenham os ingredientes fundamentais do jogo, isto é, presença de bola, oposição, cooperação, escolha e finalização. De acordo com este entendimento, não são de adotar situações que preconizem a exercitação descontextualizada e analítica dos gestos técnicos (passe, remate, drible, etc.), dado que a execução assim realizada assume caraterísticas diferentes daquela que ocorre no contexto aleatório do jogo. O jogo é uma unidade e, como tal, o domínio das diferentes técnicas (passe, condução, remate, etc.), revelado pelos praticantes, embora se constitua como um instrumento sem o qual é muito difícil jogar e impossível jogar bem, não permite necessariamente o acesso ao bom jogo.
Para que o bom jogo possa acontecer com uma dinâmica que favoreça a evolução do indivíduo que joga, deve propôr-se ao praticante um jogo relativamente acessível, isto é, com regras simples, com menos jogadores e num espaço mais pequeno, de modo a permitir: a perceção das linhas de força do jogo (bola, terreno, adversários, colegas), muitos e diversificados contactos com a bola, a continuidade das ações e várias possibilidades de concretização.
Fases do ensino do jogo
O jogo de futebol é uma realidade complexa porque o jogador tem que, a um tempo, relacionar-se com a bola e referenciar a sua situação no terreno de jogo, a posição dos colegas, dos adversários e das balizas. Devido a esta complexidade, impõe-se que o seu ensino seja gradual: do conhecido para o desconhecido, do fácil para o difícil, do menos para o mais complexo. Até chegar aos problemas do jogo formal, há que resolver um conjunto de situações passíveis de hierarquização, em função da estrutura dos elementos de jogo: jogador, bola, balizas, colegas e adversários.
Somos portanto apologistas dum ensino do Futebol referenciado a fases evolutivas, ou etapas, que permitam integrar tarefas e objetivos de complexidade crescente. Todavia, a necessidade de dividir o ensino em fases não deve conduzir à divisão do jogo em elementos (passe, condução de bola, remate, etc.), mas antes à sua estruturação em unidades funcionais.
Fase 1: construção da relação com a bola
Fase 2: consciencialização dos alvos (balizas)
Fase 3: construção da noção de oposição
Fase 4: construção da noção de cooperação
Construção das situações de ensino e treino
Deverá ser solicitada e estimulada a adaptabilidade em situações simultaneamente ajustadas ao nível de desenvolvimento do praticante e às exigências do jogo.
É aconselhável que se recorra a um conjunto de variáveis, cuja utilização permite induzir transformações na configuração dos exercícios, bem como nos comportamentos e atitudes dos jogadores. Algumas dessas variáveis podem ser: bolas (com diferentes tamanhos), balizas (com diferentes dimensões), espaço de jogo (adequado às caraterísticas dos praticantes), número de jogadores (formas jogadas adaptadas), regras, outras...
Resumindo:
1. o ensino do Futebol é o ensino do jogo!;
2. deve cultivar-se no praticante de Futebol uma atitide tática permanente;
3. o desenvolvimento da capacidade de controlo da bola exige a criação de condições de exercitação que passam pela necessidade do praticante efetuar contactos frequentes e diversificados com a bola;
4. Se o número de jogadores a referenciar num jogo for elevado e se a isso adicionarmos um terreno de jogo com grandes dimensões, a perceção das linhas de força do jogo torna-se mais complexa, dificultando o acesso a níveis de jogo superiores;
5. No caso dos principiantes, se as situações de ensino e treino do Futebol não propiciarem a criação de várias ocasiões de finalização, o jogador perde de vista o objetivo central do jogo (o golo) e fixa a sua atuação quase exlusivamente ao nível do jogo de transição, o que conduz a um uso e abuso do jogo indireto em detrimento do jogo direto.
6. A situação 3x3 revela-se como a estrutura mínima que garante a essência do jogo, na medida em que reúne o portador da bola e dois recebedores potenciais, permitindo passar duma escolha binária a uma escolha múltipla, preservando assim a noção importante de jogo sem bola. Do ponto de vista defensivo, reúne um defensor direto ao portador da bola (1º def.) para realizar a contenção e dois defensores (2º e 3º) relativamente mais afastados do portador da bola, para concretizarem eventuais coberturas, dobras e compensações, respeitando os restantes princípios defensivos: cobertura, equilíbrio e concentração.
7. As posições por nós sustentadas conduzem à ideia de que, no ensino do Futebol, deve propôr-se ao principiante um jogo acessível, isto é, com regras ajustadas, com número de jogadores e espaço adequados, de modo a permitir a continuidade das ações, o domínio percetivo do espaço, uma frequente participação dos jogadores e variadas possibilidades de finalização."
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